5.20.2009

equivalente

Aviso-te já que isto hoje pode sair um nadinha confuso, estou naqueles dias de pouca arrumação, provavelmente penso uma coisa e ponho-a logo aqui. Aqui há dias recebi uma mensagem a dizer "a avó acaba de partir". Isto é sempre muito diferente para toda a gente. Uma avó pode ser alguém que vimos duas ou três vezes, que chatice, às tantas tenho de passar lá, se não tiver nenhum compromisso, ou então mando flores, telefono aos meus pais a dar um beijinho. Ou uma avó pode ser o que tu me foste. A minha infância. É difícil explicar isto aos outros, mesmo aos da família, mas nós sabemos. Dizerem-me que partiste não é propriamente uma surpresa, mas então o que é isto aqui a arder tanto? Querer dizer coisas e não sair nada? Tu partires é dizerem-me que a minha infância já passou mesmo, acabou de vez, atravessamos a vida inteira a acreditar que ainda lá está, mas a infância (já viste) é apenas os dias parecerem mais longos, e as férias, e as casas. E as pessoas protegem-nos e praticamente não ficam velhas, os que amamos não vão envelhecer nem morrer. E está na altura de dizer coisas que ninguém sabe. Que foste a pessoa com quem mais falei, eu que toda a gente sabe que me tenho calado tantas vezes tanto tempo, foste a pessoa com quem mais falei, que me pegou na mão de bebé para criança, para rapazinho, para rapazote, para adolescente. Eu era o teu primeiro neto e tínhamos nomes um para o outro que só dizíamos quando ninguém estava a ouvir. Que ninguém saberá. Uma vez era um domingo (era sempre domingo na tua casa, a porta aberta, família a entrar e a sair, cheiros de comida e de jardim, a colónia do avô quando descia as escadas após o banho). Bom, dizia-te que era um domingo, estou-me a perder (estou a escrever isto num domingo, não me faças chorar, sabes que eu ia chorar para o pé de ti, e chorei criança, rapazinho, rapazola, chorei duas vezes homem feito). Desculpa, agora é que é. Era domingo de manhã (caramba, chega, o que é isto aqui a arder tanto?), era domingo e fazias-me torradas, tu de roupão, ficaste um nadinha junto à porta que dá para o quintal, vinha a luz da manhã cedo e iluminou-te a cara, os teus olhos da cor do céu, igualzinha, nem mais escuros nem mais claros, da cor do céu, e eu era tão pequeno que só sabia há pouco tempo que havia a morte e pensei ao ver-te assim, não morras, nem hoje nem daqui a uns tempos, não morras se possível, era domingo e eu tinha aquele pijama vermelho às riscas que me estava um pouco grande nas mangas, só os dois na cozinha, e tu enquanto me fazias torradas, batias a massa dos biscoitos, aqueles que ficavam umas argolas com açúcar à volta, que eu punha nos dedos, depois ficava a massa que já não ias aproveitar e davas-me a colher de pau, que era para eu rapar, nunca nada de nada me soube assim, eu a encher-me de açúcar e a fazer-te perguntas, perguntei-te como aprendeste a cozinhar. Disseste-me que para aprender só é preciso ver, e querer ver. Depois acrescentaste: vê tudo o que puderes, tudo, vê bem que a vida e o mundo estão cheios de maravilhas. Tu a dizeres-me que isto passa num instante, mas eu não me preocupei porque tu não ias morrer nunca, porque era domingo e os canteiros lá fora no jardim, flores vermelhas e amarelas e azuis dos teus olhos, por isso quando me debrucei sobre ti no caixão e te falei ao ouvido, pode parecer disparato mas pensa bem no que te disse. Uma última coisa: vou dar um título piroso e infantil a esta crónica. Apetece-me, porque hoje é domingo e sou uma criança.


"Para a minha querida avó"

Rodrigo Guedes de Carvalho

1 comentário:

Patrícia disse...

Joana agora estou aqui: andarmaisdevagar.blogspot.com

beijo :)*